No início de fevereiro, Guilherme Benchimol, André Esteves, e o vice-presidente do Bradesco, Marcelo Noronha, se apertavam educadamente em meio a uma multidão no canto de uma loja em Teresina, no Piauí.
Os três banqueiros haviam viajado milhares de quilômetros para fora do eixo Rio-São Paulo para prestigiar a inauguração de mais uma loja do Grupo Mateus, o quarto maior atacarejo do País, que deve ser avaliado em R$ 20 bilhões quando chegar à Bolsa mês que vem.
Recebidos um a um pelo fundador da empresa, Ilson Mateus, os banqueiros fizeram seu pitch para ganhar um lugar no que deve ser um dos IPOs (initial public offering”, ou “oferta pública inicial” mais quentes da já exuberante safra de 2020. (No final, os três bancos — mais Itaú e Santander — entraram na operação, que é liderada pela XP.)
O Mateus quer levantar R$ 3,5 bi numa oferta primária e outros R$ 600 milhões numa secundária. A operação deve ser precificada em 7 de outubro.
Se a oferta sair no valor que vem sendo testado pelos bancos, o Mateus vai estrear na Bolsa valendo o mesmo que o Grupo Pão de Açúcar — que na semana passada anunciou que vai listar o Assaí como uma empresa independente. (Em termos de valor da firma — uma métrica que inclui a dívida — o GPA ainda seria maior, com um FV de R$ 29,3 bi contra R$ 16,5 bi do Mateus, que iria para Bolsa com um caixa líquido de R$ 3,3 bi.)
Com 136 lojas no Maranhão, Pará e Piauí, o Grupo Mateus faturou R$ 9,9 bilhões ano passado e espera bater R$ 13 bilhões este ano. Para efeito de comparação, o Assaí e o Atacadão faturam R$ 30 bi e R$ 42 bi, respectivamente.
Os investidores estão excitados com a oportunidade de comprar uma companhia regional forte, que deriva mais de 40% de sua receita do atacarejo e cresce as vendas 30% ao ano — além de prometer um plano de expansão agressivo numa região onde os concorrentes nacionais são menos fortes.
À semelhança do Grupo Pão de Açúcar, o Mateus opera cinco formatos diferentes. São 29 atacarejos — que respondem por 42% da receita — 23 supermercados, dois Hiper Mateus, 66 lojas da Eletro Mateus e 16 lojas Camiño, um formato de loja comparável ao Minuto Pão.
A primeira coisa que surpreende no Mateus é a cultura enraizada no time, resultado de “um treinamento absurdo,” nas palavras de um potencial investidor.
Cada loja do Mateus é dividida em cerca de 13 operações, como padaria, peixaria e açougue — cada uma com P&L, metas e remuneração variável próprios. Em vez de o gerente da loja ser o único responsável por tudo, o funcionário de cada seção tem que responder por sua performance, gerando um alinhamento maior e um índice de perdas menor.
O grupo tem método para crescer: a operação de atacado fornece pistas sobre quais cidades comportariam um mercadinho ou um atacarejo; em seguida, o grupo cria rotas logísticas de acordo com a densidade de cada área e vai crescendo “de um jeito parecido com aneis de cebola,” nas palavras de um analista. Ilson sabe de cabeça o número de habitantes de cada cidadezinha da região.
Alguns investidores temem que o Mateus foque demais no faturamento, mas se esqueça de retorno. O histórico para comparações é curto, porque a companhia tem apenas três anos de balanço auditado.
“Ele pode ser um cara que olha muito para a venda e tem tudo controladinho — mas de uma maneira que ele não sabe explicar — ou pode ser um cara que só olha venda mesmo, com pouca atenção às métricas de retorno,” disse um investidor que, apesar deste receio, pretende entrar na oferta.
Nos seis primeiros meses deste ano, o Mateus faturou R$ 5,1 bilhões, um crescimento de 30% sobre o mesmo período do ano passado. O lucro líquido foi de R$ 297 milhões, uma alta de 78%. O EBITDA, de R$ 478 milhões, teve um crescimento de 62%, e a margem EBITDA ajustada avançou de 6,4% para 8,1%.
A saga empresarial do Mateus é uma dessas histórias de sucesso do Brasil profundo.
Ex-garimpeiro, ex-torneiro mecânico e ex-vendedor de cachaça, Ilson entrou no varejo em 1986 ao montar uma mercearia em Balsas, 800 km ao sul de São Luís. Logo começou a vender no atacado, atendendo comerciantes de cidades próximas.
Hoje com 54 anos (e aparentando menos), o fundador do Mateus tem apenas o ensino primário, é um homem profundamente religioso e um workaholic que não tira férias nem tem casa de praia. “A gente só compra terreno e abre loja,” gosta de dizer. (Ok, ele tem um Phenom 300 para rodar as lojas, mas a região é mal servida por voos e também ninguém é de ferro. Aliás, a fofoca entre os bancos é que sua aeronave é o segundo jato corporativo que mais voa no Brasil em número de horas — só perdendo para o da Fiat.)
Pensando no ecommerce, a companhia, que tinha 120 programadores no ano passado, agora tem 180, e, por indicação de Júnior — que fundou uma incubadora de startups no Norte-Nordeste — o pai colocou no conselho Bruno Nardon, que liderou o Rappi no Brasil até recentemente e é bem conhecido no ecossistema de startups no Itaim
O braço direito de Ilson é Jesuíno Martins, que começou como office boy na companhia há 22 anos, rodou várias áreas e hoje é ao mesmo tempo o chairman e o vp de operações.
O filho de Ilson, o Júnior, cuida de toda a área de tecnologia e RH. Ilson não esconde de ninguém que o está preparando como sucessor.
Ilton, irmão do fundador, é o diretor responsável pela área de eletro, e José Morgado, um veterano do Banco da Amazônia e CFO do Mateus há cinco anos, resolve tudo para a família — ainda que para saber alguns números Ilson recorra à controller.
O Mateus é na essência um negócio familiar, mas as escolhas feitas para o recém-formado conselho de administração mostram as preocupações estratégicas do fundador: como o grupo tem interesse em melhorar a penetração de serviços financeiros em suas lojas, Ilson convidou para o conselho Carlos Henrique Bandeira de Mello, o “Caíque”, cujo currículo inclui ter sido presidente do Banco Carrefour por cinco anos.
Como o grupo é muito dominante no Maranhão, alguns investidores também manifestam dúvida se, ao entrar em novos estados, o Mateus conseguirá ter o mesmo sucesso que em sua terra natal. Neste momento, o Mateus tenta crescer no Pará, e já disse que o Ceará é seu próximo destino.
“Cada novo mercado é um território novo,” diz um analista. “Ele começou no Maranhão há 30 anos… O Ceará já é uma praça muito mais populada, com muitas lojas do Assaí e Atacadão, e na Bahia é a mesma coisa… É difícil imaginar que ele teria o mesmo sucesso.”
O grupo tem um benefício fiscal de ICMS relevante no Maranhão, o que também gera questionamento. Cerca de 40% do lucro vem desse benefício fiscal, que abrange a distribuição e acaba em 2022. (Dado o benefício, o Mateus tem uma alíquota presumida de 2% nas mercadorias expedidas pelo CD e pagou uma alíquota efetiva de imposto de renda de apenas 4% ano passado).
Quaisquer que sejam os desafios à frente, no entanto, eles não devem ser nada comparáveis aos que o Mateus já superou para chegar até aqui.
Fonte: Folha do Cerrado